quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A Lua é Minha ou A Praça Roosevelt continua linda

Um pintor brocha. A piada pronta ganha contornos existencialistas no texto de Mário Bortolotto. João Luís, vivido por Ruy Andrade, está em crise criativa, uma brochada tanto sexual quanto psicológica. Sem conseguir pintar nada que preste, ele vive às custas de sua marchand, Fernanda Fazzi *, que já está desesperada para que ele pinte algo vendável novamente. Na velha luta artista versus mercado, João vive um interminável intervalo.

Ela tem então a ideia de apresentar Fabiane (Luisa Valente) para o pintor, esperando que a garota surta algum efeito no artista, tanto faz se no campo artístico ou sexual, desde que o tire do estado de letargia. João acaba aceitando conhecer a moça, chamada de Fabiane, a louca. Mais tarde ele compreenderá o motivo da alcunha.

A tensão sexual que se estabelece entre os três personagens é apenas um pretexto para que Bortolotto exponha temas mais próximos e constantes de sua obra: solidão, perda e desapego, tanto emocional quanto material. É da boca de Fabiane que João irá aprender a mais triste das lições: devemos aprender a perder aquilo que amamos.

A montagem de Luiz Eduardo Frin mantém elementos característicos das peças de Bortolotto, como o cenário contido, não muito mais do que poucos móveis e garrafas de bebida, e acrescenta outros, como uma tela onde são projetadas imagens que complementam o texto. Em alguns momentos, tem lá sua graça, como quando Bukowski faz companhia às duas personagens femininas em um bar; em outros, serve como asterisco, mostrando imagens de trabalhos de Basquiat enquanto João faz uma breve biografia do pintor, num momento Wikipedia da peça.

A Lua é Minha nos apresenta personagens que já desistiram de procurar por algo, como que conformados com sua infelicidade. Fabiane debocha de João quando este acredita que eles podem formar um casal. Mas a percepção de que nada possuem não deixa de ser libertadora. Enquanto todos buscam o sol, a luz do estrelato e da riqueza, Fabiane e João têm a lua para si.

A Lua é Minha ganha uma sessão extra no domingo, 20/12, com renda revertida para os custos de tratamento e estadia dos parentes de Mário Bortolotto. A propósito, a sessão estava lotada, contrariando o alardeado esvaziamento da praça em decorrência do assalto ao Parlapatões.

* no dia 16/12, Fernanda Fazzi foi belamente substituída por uma atriz cujo nome infelizmente não me lembro.

Espaço dos Satyros 1
Pça. Franklin Roosevelt, 214 - Consolação - Centro. Telefone: 3258-6345.
Ingresso: R$ 10 (preço promocional).
Dia 20: 20h.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Há que se concordar com Tarantino: Bastardos Inglórios é seu melhor trabalho

Em recente entrevista, Quentin Tarantino disse que, com a cena inicial de Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, no original, com a grafia de Bastards propositalmente errada), superou aquela que acreditava sua melhor cena até então: a do interrogatório em Amor à Queima Roupa (curioso que ele estime tanto a cena, e ele deve se referir ao roteiro apenas, já que, no passado, deixou claro sua insatisfação com o tratamento que seu texto recebeu de Tony Scott).

Na cena em questão, Dennis Hopper, na pele do personagem Clifford Worley, pai de Clarence Worley (interpretado por Christian Slater), é interrogado pelo gângster Vincenzo Coccotti, irrepreensivelmente interpretado por Christopher Walken, que está em busca de uma mala cheia de cocaína roubada pelo filho de seu interrogado. Interrogado é um modo sutil de dizer, já que Worley está, como se poderia presumir, sendo espancado para que entregue seu filho.

Em meio à sessão de tortura, Worley, audaciosamente (ou quem sabe já prevendo seu fim), pede um cigarro a seu algoz e desata a lhe contar a história de seus antepassados; como o sobrenome denuncia, Coccotti é italiano, siciliano, mais precisamente. E os sicilianos, como conta Worley, carregam olhos e cabelos escuros hoje em dia após inúmeras relações entre seus antepassados italianos e os mouros (que, nas palavras de um sarcástico Worley, não deixam de ser negros; conclusão: Coccotti tem sangue negro nas veias). É obvio que Worley é morto por Coccotti, mas isso não importa, pois ele já empreendeu sua vingança.

Na cena que abre seu mais recente filme, outro interrogatório se trava. Desta vez, entre um oficial nazista, um Caçador de Judeus, como é conhecido, e um francês acusado de esconder judeus em sua casa. Christoph Waltz, o oficial nazista Hans Landa, não faz vergonha a seu quase xará Christopher da cena acima citada e domina o filme magistralmente. Outro interrogatório, outra vingança. Mas, neste caso, ela virá ao final.

Inglourious Basterds terá outros “interrogatórios”. Afinal de contas, estamos na época da Segunda Guerra e os inimigos podem estar escondidos, disfarçados em qualquer lugar. Assim como a primeira, estas cenas são dos pontos altos do filme, permitindo a seus atores travarem duelos verbais de extrema grandeza, tão fortes quanto os duelos de espadas e outras armas vistos em Kill Bill, outro dos filmes do diretor.

Mas, em se tratando de Tarantino, não é apenas com diálogos que se preenche as mais de duas horas de projeção (153 minutos, para sermos exatos). Há a sua já famosa violência esteticamente forte e, ao mesmo tempo, pop, já que, de tão exagerada, beira o absurdo das histórias em quadrinho. Os Bastardos Inglórios do título protagonizam a maioria delas, já que se trata de um grupo de oficiais judeus americanos que vai à Alemanha com um só propósito: matar o maior número possível de nazistas. Seu líder é o tenente Aldo Raine (Brad Pitt, que pode colocar este em sua prateleira de papéis marcantes, como o Tyler Durden de Clube da Luta e o Mickey O'Neil de Snatch e que, coincidentemente, fez uma ótima ponta como um viciado – sem trocadilhos – em Amor à Queima Roupa). O fato é que Raine faz questão de que cada um de seus homens lhe traga uma singela lembrança: cem escalpos nazistas, a parte de cima, que cobre o cérebro, de suas vítimas (curiosidade: existe um personagem da Marvel, do universo dos X-Men, com a mesma mania, o Caçador de Escalpos, também ele um oficial americano da Segunda Guerra).

Existem diversas leituras, camadas, tramas e sub-tramas em Bastardos Inglórios. O filme é uma ode ao western (como visto já na abertura e em outros momentos), a quem Tarantino deve tanto, principalmente na sua faceta Spaguetti e explicitamente a Sergio Leone. Mais do que ao western, é uma ode ao cinema, pano de fundo e figura central onde se desenrola parte considerável e o clímax do filme. O diretor aproveita também para se dar ao prazer de ser auto-referencial. O que é a cena do strudel se não uma citação da cena do milk shake de cinco dólares presente em Pulp Fiction? E o tenente Aldo Raine, que nos faz lembrar o Jules Winnfield do mesmo Pulp Fiction, ao citar sempre o mesmo texto antes de atacar suas vítimas?

O fato é que, ao mesmo tempo em que homenageia a história do cinema (não só o alemão, mas este explicitamente citado), Tarantino se dá ao luxo de aludir a si mesmo, como quem faz uma piada interna. O que poderia passar por megalomania em um diretor menor, é permitido a Tarantino após este filme. Com Bastardos Inglórios, ele atinge o patamar de seus ídolos e responde a quem via nele apenas um pastiche de outros diretores. Há que se concordar com Tarantino: Bastardos Inglórios é seu melhor trabalho.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Felizes Para Sempre é luta verbal entre personagens desiludidos

Mais do que uma peça dividida em três partes, “Felizes Para Sempre” é uma luta de três rounds. Um duro embate entre homens e mulheres, em que ambos saem feridos. No primeiro assalto, ou melhor, na primeira história, “Speak Easy”, um homem fuma (últimas baforadas antes que a lei vigore) à espera de sua mulher. Fuma e bebe. Há três dias. “Sweet Jane”, do Velvet Underground, toca no rádio, um dos poucos objetos em cena, além de latas de cerveja, garrafas, abajures e um sofá-cama. Lucia chega e a luta se inicia. Luta verbal, em que as armas usadas são as palavras redigidas pelo autor, Mário Bortolotto. “O Rei do Amor está morto” mostra um casal que discute a masculinidade de James Dean, os fetiches de Elvis Presley e o próprio relacionamento. Em “Sweet Emily”, um ex-pugilista e escritor frustrado volta para casa, após apanhar vergonhosamente em uma briga de rua.

Em todas as cenas, personagens derrotados, perdidos, beijando a lona. Simone Shuba, que assina a direção, consegue imprimir a concisão que o texto pede. A iluminação, com uma luz baixíssima, e o cenário, quase vazio, reforçam o clima de melancolia que permeia a peça.

Adriana Quintanilha, Felipe Ramos, Mariana Marinho e Henrique Zanoni se revezam nos papéis, com destaque para Adriana, a Lúcia da primeira e a Sweet Emily da terceira parte. Em meio à sujeira, à violência e à degradação humana, os personagens ainda conseguem, a seu modo, serem felizes para sempre.

Espaço dos Satyros 1
Texto: Mário Bortolotto
Direção: Simone Shuba
Elenco: Adriana Quintanilha, Felipe Ramos, Mariana Marinho, Henrique Zanoni
Quando: Quinta, 20hs
Onde: Pça Roosevelt, 214
Quanto: R$ 20,00; R$ 10,00 (Estudantes, Classe Artística e Terceira Idade); R$ 5,00 (Oficineiros dos Satyros e moradores da Praça Roosevelt)
Lotação: 70 lugares
Duração: 70min
Classificação: 16 anos
Gênero: Drama
Quando: até 30 de julho de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Madrugada dos Vivos

A madrugada é dos vivos. Não há zumbis na madrugada. O bar fecha cedo. Os tempos são outros, tempos obscuros. O jeito é ir embora, encarar a noite alta. Alto. O caminho de volta é tortuoso, depois de horas. Como num filme de Scorsese. O ônibus passa correndo, o jeito é correr atrás. Não sem antes discutir. Não há tempo para assaltos, é preciso alcançar o ônibus que parou no sinal. Ele não vai parar, ele avisa. Eu vou correr atrás de você, ameaça. Tarde demais. A madrugada é dos vivos. Não se pode ficar para trás.

O ônibus não vai muito longe. É preciso pegar outro. Pegar mas não pagar. O crédito acabou. O jeito é mergulhar, como tantas vezes antes. O travesti caminha pela rua ajeitando os peitos. Orgulhoso. O posto é o último refúgio. Uma última cerveja, é tudo o que pede a noite. Mas outros também pedem. O japonês bem vestido e tatuado pede um refrigerante. A voz entrega que não é disso que precisa. Um cara passa correndo. Como se não houvesse amanhã. Segundos depois outro corre atrás. Não existem zumbis na madrugada. Ela é dos vivos, e é preciso correr.

Dois moleques estão felizes. Enganaram um viado. Que queria uma chupada. Viado e pedófilo. Vinte reais mais pobre. Não se pode bobear na madrugada. Um mendigo canta Zeca. Mas de um jeito bem Bezerra. Não há couvert para ele. Ninguém pede bis. É preciso ir embora.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Bortolotto ri de playboys que se acham grande coisa

Duas garrafas de cerveja, um livro dos Malvados e uma coletânea do Iggy Pop na cabeça, fui assistir Será que a gente influencia o Caetano, assinada por Bortolotto e dirigida por Henrique Stroeter e Claudinei Brandão. Diferente da maioria das peças do dramaturgo, que transbordam melancolia, essa aqui vai pelo caminho da caricatura e do escracho. Mas o destino final é o mesmo, a mais pura fotografia de uma geração perdida. O triste é constatar que o texto, de 1985, tirando uma ou outra adaptação aos novos tempos (NX Zero e My Chemical Romance, cada geração tem os ídolos que merece), mantém-se extremamente atual.

O cenário é zero. Nem as fatídicas mesinhas lotadas de garrafas, que fazem parte da maioria das peças do autor, estão presentes aqui (justiça seja feita, em uma cena os personagens dão um tapa numa long neck). Isso dá espaço para que Alexandre Bamba e Mario Mathias brilhem nos papeis de dois losers, dois playboys que, no entanto, acham que são grandes artistas (um músico e um poeta). O sonho dos dois é conquistar a fama e, quem sabe até, fazer uma música que influencie Caetano Veloso (outra triste constatação, ainda hoje a figura de Veloso continua atual).

A quantidade de referências mezzo pop mezzo kitsch faria inveja a Tarantino. Impagável a cena em que os dois dançam Serginho Mallandro. Ídolos (o programa trash), emo, MPB, garotas de cursinho, garotas de faculdade. Tudo vira piada e transborda acidez no texto de Bortolloto. Como diria Gil Vicente, é rindo que se critica. Ou como diria o povo, é rir pra não chorar.

Será que a gente influencia o Caetano?
Onde: Espaço Parlapatões - Praça Franklin Roosevelt, 158, Consolação
Quando: quintas, 21h; sábados, 23h59. Até 28/02.
Quanto: R$ 20,00.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O Casamento de Rachel mostra deslocamento de ex-viciada

É de deslocamento que nos fala Jonathan Demme em O casamento de Rachel. Porque é assim que Kym, personagem de Anne Hathaway (indicada ao Oscar de Melhor Atriz pelo papel) se sente durante grande parte do filme. Kym volta para casa bem a tempo do casamento da irmã, Rachel. O problema é que ela não estava de férias, mas sim internada em uma clínica de reabilitação.

A partir daí, a câmera de Jonathan Demme (que evoca uma câmera caseira, como se víssemos um vídeo de casamento) e os olhos de todos se voltam para Kym. Logo quando ela chega em casa, alguém a reconhece e pergunta se ela não tem “unzinho” pra arrumar. Assim como acontece com ex-detentos, é difícil se livrar da fama de junkie, mesmo para quem está limpo como Kym.

Mas aos poucos o castelo de cartas da família vai caindo, e vemos que não é só no personagem de Hathaway que se concentram os problemas. Se ela é a ovelha negra, o resto do rebanho não é tão branquinho como parece. O pai se preocupa de maneira obsessiva com a filha, a irmã só se preocupa com o casamento, a mãe (divorciada) é ausente, etc.

Assim como em O silêncio dos inocentes e Filadélfia, filmes mais conhecidos de Demme, o protagonista é uma outsider, uma deslocada, uma gauche. Ela simplesmente não se encaixa no meio em que vive. Não por acaso, um dos poucos com quem consegue estabelecer uma relação é com o padrinho, que por acaso faz parte do mesmo grupo de reabilitação que frequenta.

Em muitos aspectos O Casamento de Rachel lembra Feliz Natal, de Selton Mello, que por sua vez lembra os filmes de Cassavetes. Um ente problemático que retorna ao lar, para uma família que, por trás das aparências, também desmorona.

Beleza em meio ao caos de São Paulo

Se a intenção da mostra 300mm, em cartaz no Instituto Cervantes, era recriar o clima da caótica São Paulo, conseguiu. Perto da gravação em espanhol repetida ad nauseum com informações sobre a cidade, o clima da hora do rush da Avenida Paulista, onde fica o Instituto, torna-se quase bucólico.

Mas a despeito do caráter de instalação, a exposição é bem feita e significativa. Diversos aparelhos de televisão de um lado, escadas no meio e imagens projetadas do outro mostram fotografias de São Paulo que apontam a diversidade da capital. Em uma das projeções, imagens de Bob Wolfenson e Tuca Vieira (infelizmente não é discriminado de quem é cada foto) de uma São Paulo ao mesmo tempo caótica e bela. Wolfenson e Vieira conseguem enxergar a beleza (em um simples arco-íris, por exemplo) por trás de elementos tão odiados pelo paulistano, como o trânsito e a superpopulação.

Na projeção do meio, primeiramente são mostradas fotografias de Filipe Berndt, do bairro da Bela Vista, mais especificamente de uma academia montada debaixo de um viaduto, voltada principalmente ao boxe. Berndt, assim como já o fizeram Scorsese e Eastwood no cinema, descortina o que há de belo em um esporte visto muitas vezes apenas como violento. Outra série apresenta a arte urbana tão presente (e tão polêmica) em São Paulo, em imagens de Ignacio Aronovich.

Primeiro a pixação, depois o grafitti. Mas um tipo especial de grafitti, feito no subterrâneo, nas galerias pluviais, por Zezão, que chama a atenção com seus ícones abstratos para o lixo que a cidade produz e prefere esconder. Um dos televisores apresenta um vídeo do mesmo Aronovich sobre o trabalho de Zezão.

A última das projeções contrasta com as demais, por mostrar uma São Paulo em preto e branco, vista de cima, com ar antigo e romântico. Daria até para esquecer um pouco do caos, se não fosse a gravação em repetição contínua, de enlouquecer. Como, muitas vezes, a própria São Paulo.

Onde: Instituto Cervantes - Avenida Paulista nº 2.439
Quando: até 21/02 - segunda-feira das 08h às 20h; terça à sexta das 08h às 21h. Sábado das 09h às 15h.
Quanto: grátis